Instituída como instrumento jurídico para incentivar e proteger a criação intelectual, para benefício do criador e da sociedade, a Lei de Direito Autoral expoõe, cada dia mais, a dificuldade de conciliar o acesso público à cultura e a liberdade do autor em relação a sua obra.

No caso brasileiro, a atual Lei de Direito Autoral, (no 9.610 / 1998) constituída em 1998, já apontava diversas incongruências frente à realidade do País. Recentemente, a legislação brasileira foi considerada a sétima pior entre as de 34 países pesquisados pela Consumers International.

Para dar cabo da atualização necessária da Lei, o Ministério da Cultura – Minc, órgão que administra a legislação autoral, decidiu reformular todo o seu conteúdo. Primeiramente, o assunto passou por um processo de avaliação que originou uma proposta de revisão da lei, agora aberta a consulta pública. Só depois de compiladas as sugestões do público, será criado o texto final do anteprojeto da Lei de Direito Autoral. Guilherme Varella, advogado do Instituto de Defesa do Consumidor – Idec afirma que “historicamente, a questão dos direitos autorais é tratada à distância, porém, ela está mais próxima da sociedade do que se pode imaginar”

Levantando a bandeira de que a sociedade pode e deve debater o futuro de sua legislação, o Instituto Polis organizou, no último dia 13, o debate Direito autoral, produção e acesso à cultura. Para guiar o assunto e discuti-lo mais a fundo, foram convidados o diretor de Direitos Intelectuais do MinC, Marcos Alves de Souza; o professor de Cultura Digital da Universidade do ABC, Sérgio Amadeu; o presidente do Conselho Nacional dos Cineclubes, Frank Ferreira; a jornalista, especialista em Economia da Cultura do Instituto Overmundo, Olívia Bandeira; o produtor do Teatro Mágico e do site Música para Baixar, Gustavo Anitelli; e o produtor cultural do Pontão Ganesha de Cultura Digital, Thiago Skárnio.

Todos a favor da reforma. O grupo dos descontentes reúne-se em outros fóruns, deixando clara a falta de diálogo entre eles e as diferenças de visão de mundo e do lugar que o direito autoral deve ocupar em nossa sociedade.

Apresentando alguns pontos da proposta, o diretor de Direitos Intelectuais do MinC, Marcos Alves de Souza, constatou que o pecado de nossa atual lei é não visar plenamente a proteção do patrimônio cultural e nem mesmo olhar para a sociedade como seu destinatário final. Na lei, não é permitido, por exemplo, migrar músicas de um CD para o computador ou para o MP3. Assim como também não é permitido copiar uma obra na íntegra, sem autorização do detentor de direitos autorais. Nem mesmo instituições como bibliotecas podem tirar cópias para preservar obras que estão em processo de deterioração. “Filmes e músicas também não podem ser exibidos em salas de aula, com fins pedagógicos, sem a autorização do detentor dos direitos”, explica o caderno Direito Autoral em Debate, criado pela Rede pela Reforma da Lei de Direito Autoral.

“Pela primeira vez, o Direito Autoral é visto como uma política pública”, comenta Alves de Souza. Entretanto, não é possível modificar completamente a lei, já que sua estrutura é formatada em âmbito mundial. “A Lei de Direito Autoral é vinculada à Organização Mundial do Comércio – OMC. Assim, nossa pretensão é beneficiar três esferas: os autores, para que ganhem um valor justo por seu trabalho; a sociedade, para que tenha acesso ao conhecimento; e os empresários, que também merecem ser remunerados, mas não como únicos beneficiados”, completa.

Ampla, essa lei abarca todas as áreas da cultura: literatura, cinema, música, arte plásticas, novas mídias… e, por isso, sua nova redação deve ser cuidadosa.

O presidente do Conselho Nacional dos Cineclubes, Frank Ferreira, foi o primeiro a alertar a respeito das falhas na reformulação da lei. Se, por um lado, na nova legislação os cineclubes não têm a necessidade de conseguir a autorização do proprietário dos direitos autorais após dois anos da primeira exibição comercial do filme; por outro, não se pode mais cobrar taxa de exibição, dificultando a manutenção do ambiente. “O cineclube, antes de mais nada, é uma organização da comunidade. Porém, as pessoas confundem lucro com necessidade de manutenção”, constata Ferreira. Além disso, “muitos filmes nem entram no circuito comercial. O ideal seria a liberação após dois anos de exibição, independente se em circuito comercial ou em festivais, por exemplo”, completa.

Educador do Pontão Ganesha de Cultura Digital, Thiago Skárnio levantou a relação dos direitos autorais com a educação e a literatura. “Nos pontos de cultura e nas universidades públicas do Brasil são gerados e difundidos conhecimentos financiados com dinheiro público. Mas um livro, publicado por um professor, não pode ser copiado nem por seus alunos, já que os direitos autorais ficam, na maioria das vezes, com as editoras”, comenta.  Em estudo recente, a Universidade de São Paulo – USP verificou que a relação entre o lucro das editoras e o direito autoral pago aos autores é completamente desproporcional. De cada R$3 recebidos com a venda de livros, apenas R$1 é destinado aos autores. Somado a isso, a compra da bibliografia indicada por professores compromete a renda mensal familiar de até 85% dos estudantes. Para acompanhar as aulas, resta aos estudantes a cópia ilegal das obras solicitadas para leitura.

Já em relação à música, os problemas e soluções são outros. O produtor Gustavo Anitelli levantou questões relacionadas às atuações pouco transparente do ECAD – órgão que arrecada os direitos autorais de músicas tocadas em bares, shows e rádios  e do mercado, com o famoso jabá, pagamento feito a um veículo de radiodifusão para que execute uma música. “O jabá é parte de um ciclo vicioso. Quanto mais se paga, mais a música é tocada e, assim, mais se recebe do ECAD”, afirma Anitelli. Segundo a nova proposta, a prática do jabá passaria a ser proibida pelo artigo 110B.

Anitelli ainda lembra da ilegalidade do compartilhamento de arquivos via internet. Segundo ele, a rede revolucionou a forma como nos relacionamos com a informação e com o conhecimento, porém, toda informação acessada  – textos, imagens, sons, códigos de programação… – ainda funciona como uma cópia de um conteúdo que reside em outro computador. Assim, só existe compartilhamento se há cópia e, consequentemente, ocorre a violação dos direitos autorais. No artigo 46, no inciso II, permite-se que uma música seja passada de um CD para um MP3 ou outro meio eletrônico, desde que sem fins lucrativos, mas, nada se fala do compartilhamento entre familiares.

O professor de Cultura Digital da Universidade do ABC, Sérgio Amadeu explica que a questão do compartilhamento é muito maior, já que o avanço digital é irreversível. “Quando se fala de proteção parece que se está falando de cuidado. No entanto, o que realmente acontece é a negação ao acesso. Sem a expansão para os meios digitais, a lei continuará desatualizada”, constata o especialista.

E a discussão não para por aí. Hoje, dia 19 de julho, outro debate aprofundará o assunto, dessa vez sob o tema “Direitos Autorais: um debate com toda a sociedade”, na PUC-SP. Além disso, a consulta pública estará aberta por mais 45 dias, no site do governo.

*Fonte: Blog Acesso


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Atriz, pós-graduada em gestão da cultura.

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